Desço as escadas do primeiro andar. Ouve-se o Alberto, incansavel, a ensaiar violino. Querer é, sem dúvida, poder.
A sala de alunos está vazia. Ainda bem, ja vao sendo horas de dormir.
Chego à porta do IGL e destranco. Vou apanhar um pouco de ar fresco. Os trabalhos para a faculdade sao longos e dificeis. É preciso uma pausa. Embora o aquecimento central seja optimo, quero sentir um pouco da brisa fria na minha cara.
Na parede que faz ligação com a camara, a um canto, estava sentado John.
John é um apelido que eu dei para o arrumador que "vive" no descampado em frente ao Gregoriano. Nunca falámos, é verdade, mas naquela noite particularmente fria, ve-lo ali agachado nem me levantava a mais pequena duvida: algo estranho se passava.
Aproximei-me. Ou melhor, esperei um pouco. Para ver se ele tinha reaçao à minha presença. Mas nada. Entao resolvi perceber.
Cheguei junto dele, e sentei-me tambem no chao.
Depressa percebi a razao dele estar ali. As paredes do IGL aqueciam por dentro... e por fora.
"Muito fria esta noite, hem?", disse ao olhar para mim. O seu rosto, branco, coberto pela barba que parecia nunca crescer, contornava-se em rugas que definam uma idade. Incerta.
Fitei-o meio incerto daquele tom de voz. Desabafo ou afliçao?
"Está cá há quanto tempo?", perguntei. Nao, nao percebi bem esta pergunta. Instinto.
"Olhe, nao sei. Nao tenho relógio..".
Senti-me parvo. Mais parvo ainda por estarmos ali, no frio, sentados, a tentar apanhar o maximo de calor que a parede passava para as costas.
Nos temos regras a cumprir no IGL. Especialmente uma bem clara:
"Regulamento 3, capitulo 4 - É expressamente proibida a entrada a membros estranhos ao IGL em qualquer altura de dia. O relato de situações que forem contra esta norma pode levar à suspensao do aluno em causa."
Mas... Desde quando é que o John era membro estranho ao IGL? Eu percebo. Era apenas uma desculpa. Na verdade, todos o conhecem.
Levantei-me. Estendi-lhe a mao.
"Venha. Esta na hora de servimos o chá quente e bolachas antes de ir dormir."
Ele suspendeu o olhar no horizonte. Eu fiquei à espera de uma reaçao.
"Tem a certeza?", perguntou-me.
"Claro!", respondi, enquanto ele se levantava.
Curvo, curvado sobre si mesmo, entrou no IGL. Sentiu o calor das paredes que o rodeavam.
"E eu que ja pensava que aquele pequeno lugar me aquecia muito durante a noite...", desabafou.
Embora sabendo que estava a infrigir uma regra, esperei nao encontrar gente. E por sorte, o caminho até ao refeitório foi simples.
Uma vez sentados, chamei a Laura e o Jorge. Apresentei-os.
"John, estes são...", e antes de dizer os respectivos nomes, interrompeu-me.
"É esse o meu nome?", disse, soltando uma abafada gargalhada.
Ficámos meio estranhos a olhar uns para os outros. Ele quebrou o silencio:
"Serve perfeitamente!"
E feitas as apresentaçoes, ficámos à conversa. A Laura preparou um excelente chá, o Jorge foi buscar à despensa as melhores bolachas que tinhamos, e eu fui preparar a mesa para o nosso anfitriao.
John olhava para tudo, mas quieto, sem falar. É assim que o vemos tambem na rua. Quando passa, é devagar. Quando observa, é calmamente.
"Desculpe, mas nao me disse que agora é altura de todos vierem comer alguma coisa?", perguntou-me.
Sorri. Viria doutra maneira? Nao sei. Ele percebeu.
O quanto estaria a saber aquele momento para ele? Nunca saberemos.
Não falámos de passado. Curioso, quis saber como funcionava o Instituto, o que é que cá aprendiamos, etc...
O tempo voou. Só voltei a olhar para o relógio quando bocejei. Ao reparar nesse promenor, John disse:
"Bom, creio que vai sendo tempo de eu ir!"
"Como é que sabe... se nao tem relógio?", retorqui, com um sorriso.
Enquanto arrumavamos as coisas, Laura sussurrou-me:
"Nao achas que deviamos oferecer qualquer coisa? Tem andado um tempo... Epah.. Coiso.."
Entendi. Jorge tambem ouviu e ausentou-se. Voltou pouco depois com um conjunto de camisolas, e um saco cama.
Estendendo para John, disse:
"Teriamos todo o gosto que aceitasse."
A cara, tao branca, nao deixou esconder uns olhos vermelhos. Aceitou.
Foi com pena que fechámos a porta do IGL. Laura deu as voltas à chave. Ficámos os 3 em silêncio.