terça-feira, 24 de novembro de 2009

Alguem sabe?

Desço as escadas do primeiro andar. Ouve-se o Alberto, incansavel, a ensaiar violino. Querer é, sem dúvida, poder.

A sala de alunos está vazia. Ainda bem, ja vao sendo horas de dormir. 

Chego à porta do IGL e destranco. Vou apanhar um pouco de ar fresco. Os trabalhos para a faculdade sao longos e dificeis. É preciso uma pausa. Embora o aquecimento central seja optimo, quero sentir um pouco da brisa fria na minha cara.

Na parede que faz ligação com a camara, a um canto, estava sentado John.

John é um apelido que eu dei para o arrumador que "vive" no descampado em frente ao Gregoriano. Nunca falámos, é verdade, mas naquela noite particularmente fria, ve-lo ali agachado nem me levantava a mais pequena duvida: algo estranho se passava.

Aproximei-me. Ou melhor, esperei um pouco. Para ver se ele tinha reaçao à minha presença. Mas nada. Entao resolvi perceber.

Cheguei junto dele, e sentei-me tambem no chao.

Depressa percebi a razao dele estar ali. As paredes do IGL aqueciam por dentro... e por fora. 

"Muito fria esta noite, hem?", disse ao olhar para mim. O seu rosto, branco, coberto pela barba que parecia nunca crescer, contornava-se em rugas que definam uma idade. Incerta.

Fitei-o meio incerto daquele tom de voz. Desabafo ou afliçao?  

"Está cá há quanto tempo?", perguntei. Nao, nao percebi bem esta pergunta. Instinto.

"Olhe, nao sei. Nao tenho relógio..".

Senti-me parvo. Mais parvo ainda por estarmos ali, no frio, sentados, a tentar apanhar o maximo de calor que a parede passava para as costas.

Nos temos regras a cumprir no IGL. Especialmente uma bem clara:

"Regulamento 3, capitulo 4 - É expressamente proibida a entrada a membros estranhos ao IGL em qualquer altura de dia. O relato de situações que forem contra esta norma pode levar à suspensao do aluno em causa."

Mas... Desde quando é que o John era membro estranho ao IGL? Eu percebo. Era apenas uma desculpa. Na verdade, todos o conhecem.

Levantei-me. Estendi-lhe a mao.

"Venha. Esta na hora de servimos o chá quente e bolachas antes de ir dormir."

Ele suspendeu o olhar no horizonte. Eu fiquei à espera de uma reaçao.

"Tem a certeza?", perguntou-me.

"Claro!", respondi, enquanto ele se levantava.

Curvo, curvado sobre si mesmo, entrou no IGL. Sentiu o calor das paredes que o rodeavam. 

"E eu que ja pensava que aquele pequeno lugar me aquecia muito durante a noite...", desabafou.

Embora sabendo que estava a infrigir uma regra, esperei nao encontrar gente. E por sorte, o caminho até ao refeitório foi simples.

Uma vez sentados, chamei a Laura e o Jorge. Apresentei-os.

"John, estes são...", e antes de dizer os respectivos nomes, interrompeu-me.

"É esse o meu nome?", disse, soltando uma abafada gargalhada.

Ficámos meio estranhos a olhar uns para os outros. Ele quebrou o silencio:

"Serve perfeitamente!"

E feitas as apresentaçoes, ficámos à conversa. A Laura preparou um excelente chá, o Jorge foi buscar à despensa as melhores bolachas que tinhamos, e eu fui preparar a mesa para o nosso anfitriao.

John olhava para tudo, mas quieto, sem falar. É assim que o vemos tambem na rua. Quando passa, é devagar. Quando observa, é calmamente.

"Desculpe, mas nao me disse que agora é altura de todos vierem comer alguma coisa?", perguntou-me.

Sorri. Viria doutra maneira? Nao sei. Ele percebeu.

O quanto estaria a saber aquele momento para ele? Nunca saberemos.

Não falámos de passado. Curioso, quis saber como funcionava o Instituto, o que é que cá aprendiamos, etc... 

O tempo voou. Só voltei a olhar para o relógio quando bocejei. Ao reparar nesse promenor, John disse:

"Bom, creio que vai sendo tempo de eu ir!"

"Como é que sabe... se nao tem relógio?", retorqui, com um sorriso. 

Enquanto arrumavamos as coisas, Laura sussurrou-me:

"Nao achas que deviamos oferecer qualquer coisa? Tem andado um tempo... Epah.. Coiso.."

Entendi. Jorge tambem ouviu e ausentou-se. Voltou pouco depois com um conjunto de camisolas, e um saco cama.

Estendendo para John, disse:

"Teriamos todo o gosto que aceitasse."

A cara, tao branca, nao deixou esconder uns olhos vermelhos. Aceitou. 

Foi com pena que fechámos a porta do IGL. Laura deu as voltas à chave. Ficámos os 3 em silêncio.

3 comentários:

Busorganist disse...

"Regulamento 3, capitulo 4 - É expressamente proibida a entrada a membros estranhos ao IGL em qualquer altura de dia. O relato de situações que forem contra esta norma pode levar à suspensao do aluno em causa"

De dia... se eram horas de dormir, deduzo que já fosse noite, logo não era infração nenhuma =D

Mais uma bela história ;)

Anónimo disse...

Uma história com personagens bem reais... que esta História nos inspire e desperte o nosso olhar para aqueles "John's" que se cruzam connosco todos os dias... no ajudar é que está o ganho.

Dri disse...

Pois..esta história bem podia ser real se não tivessemos por vezes tanto medo de falar com as pessoas...porque às vezes há palavras que aquecem mais que um chá ou um agasalho, há palavras que deixam marcas nas pessoas para sempre.Conheço este senhor um pouco melhor e sinto a mesma empatia.Carrega com ele o peso da sua história e na feição estão marcadas rugas de momentos não só tristes de certeza...a nós que somos amados e rodeados de amigos causa-nos uma sensação estranha quando vemos alguém conseguir viver assim...e no fundo só queremos dar um pouco de nós...e saber que sonhos tem aquela pessoa?
Ontem ouvi dizer que somos sonhos e segredos...e que num mundo globalizado temos de aprender a viver uns com os outros num mundo cheio de afectos e não de medos.Terei todo o gosto em saber mais sobre o Zé( sim é assim que ele se chama!)e juntos conseguiremos dar-lhe alguma alegria...nem que seja dar-lhe uma guitarra para as mãos e ficar a ouvi-lo tocar como se ele fosse um contador de histórias e nós crianças desejandes de ouvir o que ele tem para dizer.
Bem Hajas André!E todos os que eu não conheço que caminham contigo neste mundo da música!
Que triste seria a nossa vida sem ela : )