
De uma Boa Páscoa!
Desço as escadas do primeiro andar. Ouve-se o Alberto, incansavel, a ensaiar violino. Querer é, sem dúvida, poder.
A sala de alunos está vazia. Ainda bem, ja vao sendo horas de dormir.
Chego à porta do IGL e destranco. Vou apanhar um pouco de ar fresco. Os trabalhos para a faculdade sao longos e dificeis. É preciso uma pausa. Embora o aquecimento central seja optimo, quero sentir um pouco da brisa fria na minha cara.
Na parede que faz ligação com a camara, a um canto, estava sentado John.
John é um apelido que eu dei para o arrumador que "vive" no descampado em frente ao Gregoriano. Nunca falámos, é verdade, mas naquela noite particularmente fria, ve-lo ali agachado nem me levantava a mais pequena duvida: algo estranho se passava.
Aproximei-me. Ou melhor, esperei um pouco. Para ver se ele tinha reaçao à minha presença. Mas nada. Entao resolvi perceber.
Cheguei junto dele, e sentei-me tambem no chao.
Depressa percebi a razao dele estar ali. As paredes do IGL aqueciam por dentro... e por fora.
"Muito fria esta noite, hem?", disse ao olhar para mim. O seu rosto, branco, coberto pela barba que parecia nunca crescer, contornava-se em rugas que definam uma idade. Incerta.
Fitei-o meio incerto daquele tom de voz. Desabafo ou afliçao?
"Está cá há quanto tempo?", perguntei. Nao, nao percebi bem esta pergunta. Instinto.
"Olhe, nao sei. Nao tenho relógio..".
Senti-me parvo. Mais parvo ainda por estarmos ali, no frio, sentados, a tentar apanhar o maximo de calor que a parede passava para as costas.
Nos temos regras a cumprir no IGL. Especialmente uma bem clara:
"Regulamento 3, capitulo 4 - É expressamente proibida a entrada a membros estranhos ao IGL em qualquer altura de dia. O relato de situações que forem contra esta norma pode levar à suspensao do aluno em causa."
Mas... Desde quando é que o John era membro estranho ao IGL? Eu percebo. Era apenas uma desculpa. Na verdade, todos o conhecem.
Levantei-me. Estendi-lhe a mao.
"Venha. Esta na hora de servimos o chá quente e bolachas antes de ir dormir."
Ele suspendeu o olhar no horizonte. Eu fiquei à espera de uma reaçao.
"Tem a certeza?", perguntou-me.
"Claro!", respondi, enquanto ele se levantava.
Curvo, curvado sobre si mesmo, entrou no IGL. Sentiu o calor das paredes que o rodeavam.
"E eu que ja pensava que aquele pequeno lugar me aquecia muito durante a noite...", desabafou.
Embora sabendo que estava a infrigir uma regra, esperei nao encontrar gente. E por sorte, o caminho até ao refeitório foi simples.
Uma vez sentados, chamei a Laura e o Jorge. Apresentei-os.
"John, estes são...", e antes de dizer os respectivos nomes, interrompeu-me.
"É esse o meu nome?", disse, soltando uma abafada gargalhada.
Ficámos meio estranhos a olhar uns para os outros. Ele quebrou o silencio:
"Serve perfeitamente!"
E feitas as apresentaçoes, ficámos à conversa. A Laura preparou um excelente chá, o Jorge foi buscar à despensa as melhores bolachas que tinhamos, e eu fui preparar a mesa para o nosso anfitriao.
John olhava para tudo, mas quieto, sem falar. É assim que o vemos tambem na rua. Quando passa, é devagar. Quando observa, é calmamente.
"Desculpe, mas nao me disse que agora é altura de todos vierem comer alguma coisa?", perguntou-me.
Sorri. Viria doutra maneira? Nao sei. Ele percebeu.
O quanto estaria a saber aquele momento para ele? Nunca saberemos.
Não falámos de passado. Curioso, quis saber como funcionava o Instituto, o que é que cá aprendiamos, etc...
O tempo voou. Só voltei a olhar para o relógio quando bocejei. Ao reparar nesse promenor, John disse:
"Bom, creio que vai sendo tempo de eu ir!"
"Como é que sabe... se nao tem relógio?", retorqui, com um sorriso.
Enquanto arrumavamos as coisas, Laura sussurrou-me:
"Nao achas que deviamos oferecer qualquer coisa? Tem andado um tempo... Epah.. Coiso.."
Entendi. Jorge tambem ouviu e ausentou-se. Voltou pouco depois com um conjunto de camisolas, e um saco cama.
Estendendo para John, disse:
"Teriamos todo o gosto que aceitasse."
A cara, tao branca, nao deixou esconder uns olhos vermelhos. Aceitou.
Foi com pena que fechámos a porta do IGL. Laura deu as voltas à chave. Ficámos os 3 em silêncio.
Débora!!
Umas das nossas "campónias" faz hoje anos! Como nao podia deixar de ser, a AEIGL assinala este dia com um feriado nacional. Pena que nao mandemos nada no país..!
Deixo cá a prova deste acontecimento.
O Gregoriano ja dormia, ou parte dele, no fundo nunca sabemos o que esperar. Rapidamente e em jeito de susto, o filho da Dulce apareceu à porta, citando a famosa frase ganhadora:
"Nao há paninhos quentes, André!"
Sorri, mais que uma especie de codigo secreto, era uma ligaçao.
Eu e o Jorge limpavamos e alinhavamos a loiça lavada, num silencio pensativo. Quebrei a pausa de longas breves:
"Engraçado, Jorge. Ha bocado a Rita disse, ao jantar, que nao sabia bem o que queria seguir porque para ela era dificil nao se imaginar a cantar daqui a 10 anos."
Jorge sorriu. É mesmo assim. Sorriso compreensivo.
"Pois... acho que é um problema de todos."
E o silêncio quebrado recompos-se, qual tema de fuga!
A dificuldade está aqui. Daqui a 10 vou querer estar dentro ou fora da Musica? .. Dentro ou fora de Matematica?
Os pratos passavam de mao em mao, arrumados, prontos para o dia seguinte. O tempo era contado em forma descrescente, no fundo ninguem gosta de ficar a limpar a cozinha.
De repente, assaltado de um pensamento, partilhei:
"Bom, mas enquanto nao sabemos, nada melhor que dar graças por este dia."
Parei, encostei-me ao balcao, olhar fixo no tecto. Jorge nada disse, expectante do que viria a seguir..
"É que é um luxo poder estar a tirar um curso que sempre quis, e tambem fazer musica com estas pessoas!"
Jorge riu-se. É verdade! E realmente, poucas vezes damos valor.
Cozinha terminada, tempo de ir reunir com o pessoal na sala de alunos. Descemos calmamente as escadas...
"Simão, o que é que ainda estás a fazer de pé? Pedro! Pedro, para de correr! Isto ja nao sao horas..! Alberto... outra vez ires acordar a Magui com a esfregona.. nao..."
Avisos caiam em tom mandatário, confesso, mas tento nao faze-lo. É tao mais facil errarmos nós.
Chegado à sala de alunos, belo cenário! Todos dormiam profundamente... o cansaço era tal após um ensaio de Coro de Camara, que a ideia de ver o Rei Leao às escuras, telas de cinema, projectores directamente vindos da China ou do Cambodja, nunca sei, nao resultara.
Laura e Ana tinham a cabeça encostada uma à outra, enroscadas no pequeno cobertor.
Debora e a Eunice falavam, afinal, baixinho. Riam-se, baixinho, das suas piadas, privadas, mas que fazem delas assim tao especial.
Jorge e eu sentamo-nos, cada um numa ponta do sofá, mesmo a tempo de uma das minhas cenas favoritas:
"- Timon...
- Que é?
- Alguma vez imaginaste o que serão aqueles pontos brilhantes lá em cima?
- Pumba, eu não imagino, eu sei!
- Ah! E o que são?
- São pirilampos! Pirilampos que ficaram colados àquela coisa grande azul escura.
- Ah!... Sempre pensei que fossem bolas de gás a arder a milhões de quilómetros daqui...
- Pumba, p’ra ti, tudo é gás."
Dia cumprido, satisfaçao. Hoje há que dizer obrigado pelo que se tem. Daqui a 10 anos, aquela sala tera outras pessoas a dormir. Mas no fundo, a uniao de quem a fundou continuará, de certo!
No passado dia 6, segunda-feira, tres alunos da classe de orgao deslocaram-se ao Porto para participarem numa Masterclass com Daniel Roth.
Daniel Roth, "widely acclaimed as one of the leading French organ virtuosos" , é titular do orgao da catedral de Saint Sulpice, um dos mais importantes "postos" em Paris. Por lá passaram, entre outros, Clérambault, Widor e Dupré, nomes que deixaram uma marca própria no repertorio.
A Masterclass foi organizada pela Igreja da Lapa, mais particularmente pelo Mestre de Capela da Igreja da Lapa, Professor Filipe Verissimo.
Foi um dia de intensa aprendizagem, discussao de ideias, muita música, e claro, boa disposição.
E ao pergurtar-nos de onde eramos (André Ferreira, Daniel Nunes e Pedro Pombo), nao deixou de fazer um sinal de aprovação quando respondemos que estudávamos os 3 no Instituto Gregoriano de Lisboa.
Fica entao a imagem do final da Masterclass, para mais tarde recordar: