sábado, 28 de fevereiro de 2009

Imperturbáveis.

Ajeitei a manta por cima dos ombros. A sala 32 sempre foi das mais frias de noite, especialmente desde que o aquecedor estava estragado. Mas não conseguiria ir dormir, não sem antes acabar de analisar aquela pilha de partituras. Queria encontrar algo perfeito para tocar no EDD, tarefa que se estava a revelar difícil, pois coisas escritas para a nossa formação... só mesmo o senhor Moitinho de Almeida é que compõe.

Tive então uma ideia. Um pouco maquievélica e ilegal, talvez, mas isso só me incentivou a fazê-la. Saí da sala, sem conseguir deixar de olhar para a lista de tarefas, que me condenava a lavar a loiça no dia a seguir. Desci as escadas, tentando fazer o mínimo de ruído possível, tirei o molho de chaves da gaveta da dona Dina e entrei sorrateiramente na biblioteca.
Silêncio. Paraíso. A biblioteca submersa na escuridão, iluminada apenas pela luz do meu telemóvel. Há que ser discreta...
Dirigi-me para a secção mais afastada, música antiga. Nunca tinha oportunidade de a observar livremente, longe do olhar crítico do Sr.Viana. Rapidamente encontrei dois livros de madrigais de Monteverdi e de Luzzaschi...Perfeito!
Peguei neles, tendo o cuidado de memorizar exactamente onde estavam, para os por no sítio antes de amanhecer. Voltei à 32, e no momento em que ia fechar a porta, ouvi um barulho vindo do bar. Fiquei à escuta, a pensar o que andaria alguém a fazer àquela hora da noite: o barulho de um plástico a ser aberto, o som metálico de talheres a chocar, uma tampa a desenroscar-se...a sequência já bem minha conhecida da sonoridade da concepção de um pão com Nutella (ou melhor, com Choco Kid do Pingo Doce).
'Alberto, Alberto', pensei, abanando a cabeça. Mas depois, o comilão nocturno começou a trautear uma melodia, muito suavemente. Michael Jackson. 'Pronto, afinal é o André'.
André, o Vice-Presidente, possivelmente o único da velha guarda com paciência para os miúdos, o grande organista do IGL e a pessoa com mais e melhores ideias daquela escola. E também com mais energia e afinco para as por em prática.
Depois de acabar de ler no clavicórdio quase um livro inteiro de madrigais, dirigi-me ao quarto, reparando de imediato na cama vazia da Laura. Laura, a Presidente, a pessoa com uma personalidade poderosa e uma capacidade de 'get things done' inultrapassável.
Pensei, sorrindo, na sorte que o Gregoriano tinha em ter pessoas como estes dois à frente da AE. Muita sorte.

Lembrei a quase-discussão que eu e a Ana tínhamos tido com a Laura, a tentar dissuadi-la de fazer o turno de vigia.

'Eu quero fazer a vigia' tinha dito eu 'Queres me tirar o prazer de castigar um miúdo se ele fizer asneira?'

'E queres me tirar a oportunidade de adormecer a ver a 6ª season de Friends?' argumentara a Ana.

Mas não resultou, com o seu ar mais casmurro a Laura limitara-se a responder:

'Có-có'

Voltei ao tempo presente e lembrei-me de que tinha de devolver os livros ao sítio a que pertenciam, para não ser expulsa ou torturada pela direcção.
Dirigi-me à biblioteca e qual não é o meu espanto quando vejo luz passar pelo vidro fosco da porta. Hesitante, espreitei, deparando-me com o Afonso, despenteado, com o olhar vidrado no ecrã do computador, uma mão no teclado e na outra um sumo de maçã.

'Afonso! A navegar a estas horas?' perguntei, com o sobrolho ligeiramente erguido.

'Pois, aaa, coiso. Fungos' respondeu, sem desviar os olhos do computador.

Olhei para o ecrã e vi imagens de paredes nojificadas por fungos verdes. Arrumei os livros tal como estavam e fechei a prateleira à chave.

'Enfim, pessoas de Ciências. Como é que é possível...' disse, em tom de brincadeira, e saí da biblioteca.

Ao voltar para o quarto deparei-me com a Rita, que se tinha levantado para ir beber um copo de água.

'Então, Maria...levantada a estas horas?...' perguntou, com um semi-sorriso, um olhar penetrante e esfregando as mãos, imitando na perfeição a reacção da professora Elsa aos atrasos dos alunos.

Ri-me baixinho e mostrei-lhe o molho de partituras que tinha na mão. Ela percebeu de imediato e trauteámos rapidamente 'Io mi son Gio-vi-net-ta'.
Voltei para o quarto e subi o beliche. Na cama de baixo, a Filipa dormia, imperturbável.

'Imperturbáveis', pensei, sorrindo. É isso que a Música nos torna. Mesmo quando tudo parece correr mal, há sempre uma melodia que nos faz por um lado desligar da realidade e das preocupações e, por outro ter consciência daquilo para que tanto trabalhamos.

2 comentários:

Anónimo disse...

Só o último parágrafo vale todo o texto.

Jorge F. Rodrigues disse...

a Música, sem dúvida.
GO BAYLEY! ;)